Os shoppings são verdadeiras cidades intramuros, reinos encantados do consumo contemporâneo. Dentro deles não há relógios, logo não se vê o tempo passar; não há mudanças climáticas, logo é confortável para se passear a pé em suas ruas; não há sujeira nem materiais deteriorados, pois a manutenção é permanente; não há pedintes nem marreteiros, pois a segurança controla os acessos — ao mesmo tempo que os libera. É o cenário irreal de uma cidade ideal com suas praças, bulevares, alamedas, pisos… que tenta se manter distante das estatísticas de criminalidade e violência veiculadas pela mídia. E é o ponto de encontro pessoas de todas as idades e todas as tribos.
Nesta ampla “praça interbairros” aparentemente pública — porém com normas rígidas de freqüência —, os cidadãos são todos os consumidores de imagens, produtos e serviços que circulam, vindos de perto ou de longe, para exercer a socialidade: passear, se divertir, relaxar, “flanar”, se encontrar. Ou para peregrinar, em novas diásporas, buscando consumir e assim pertencer, votar, opinar, celebrar e participar — um simulacro de cidadania na cidade simulada.
O papel sociocultural que os shopping centers exercem como organizadores de processos econômicos, ditadores de tendências e ritmadores do comportamento contemporâneo tem formado, desde a sua existência, uma civilização “que cresceu dentro do shopping” vivenciando ou acompanhando esta cultura e sua compressão de tempo e de espaço: tudo resolvido na mesma hora em um só lugar, modificando o roteiro dos deslocamentos e reestruturando as temporalidades, acelerando-as.
Fast, fast forwarding, fast-food
Mike Featherstone (1999) anuncia o descentramento e a compressão do espaço e a diminuição das fronteiras com dois acontecimentos marcantes: o surgimento das cidades mundiais geridas tanto por atividades financeiras e comerciais como pela indústria cultural; e a globalização do capital. O tempo modifica-se com o horário global unificado, e a bolsa de valores “24 horas” worldwide non stop cria novos ritmos de socialidade. Em termos políticos, o Estado muda seu eixo centralizado para um projeto universal transnacional ou trans-social, um cosmopolitismo diplomático no qual as empresas multinacionais são as embaixadoras dos relacionamentos e os marcos das novas conquistas territoriais. Nas palavras de Köpytoff e Hanners (1987, p. 10), vive-se um ecumenismo global, uma “religião de interação e intercâmbio cultural persistentes”.
O destino provável desse processo é uma compressão cada vez maior de tempo e de espaço, encolhendo o mapa do mundo e relativizando as medições de tempo conhecidas — desestruturando as escalas capitalistas de valor e fazendo ruir muitos horizontes tidos como certos, agora voláteis, futuramente novas auroras boreais do consumo e da produção midiáticos. Pois além de “plano e pleno de coisas” (CARDOSO, 1989, p. 359), este mundo tem profundidade e abertura, que altera permanentemente as distâncias e as temporalidades a ele associadas. Bauman, em seu texto “Comunidade” (2001), analisa o redimensionamento do espaço público diante do consumo. Na metrópole, os impactos dessa postura são arquitetonicamente definidos: o encontro coletivo é dado pelo consumo, não nas praças e ágoras, mas nos templos de consumo — espécie de “realidade virtual” capaz de prover equilíbrio quase perfeito entre a satisfação, a liberdade e a segurança dos cidadãos. E o mercado adquire o status de show-room de experiências, empacotadas para consumo self (ou shelf) service ou para delivery, oferecendo aos consumidores o sentimento de identidade comum entre as diversas comunidades. Canclini (2005, p. 59-73) propõe que “o consumo serve para pensar” no espaço da multinacionalização de marcas e produtos e do imaginário multilocalizado da mídia e da publicidade, que regem o tempo.
O início da era moderna, marcado entre outras grandes inovações pelo surgimento do trem e pela utilização do ferro e do vidro nas construções arquitetônicas das megalópoles, trouxe mudanças significativas nos panoramas e na estruturação das relações humanas com o trabalho e o lazer, ineditamente acrescidos da sensação de velocidade — o fast. Nas cidades modernas, a metrópole, mistura híbrida de passado-presente-futuro sincronizando tempos e espaços, domina como totalidade, como forma fechada e organizada, localizada e localizável. Já no planejamento urbano pós-moderno, o incontrolável caos trabalha com o fluido e com o aberto, com a desestrutura e com a anarquia, com uma eterna corrente de mudanças que se concentram em planos de larga escala, racionais, austeras, funcionalistas e internacionais. O espaço é moldado para fins estéticos, atemporais e belos, e comerciais: “o passado, o futuro: ele pertence à superfície do mundo e é plasmado pela mobilidade dos conflitos, pelo consumo” pois “a cidade não tem mais portas e a metrópole não se sabe onde começa e onde acaba”, pois tudo é interpretado e editado pelo ‘video-scape’, uma acumulação de imagens que, em série, transformam o real em uma novela virtual de “videoclasses, estratificações videoétnicas, miscelâneas culturais e visuais, novos guias do comportamento urbano, design de prestígio, videogramas, etc.” (MASSIMO, 1990, p. 13-14; 51-52), entrelaçando panoramas virtuais com códigos cotidianos dos panoramas visuais que se processam nos ambientes citadinos, encadeando paisagens eletrônicas e suas réplicas virtuais.
E o agora? Neste universo tecnologicamente imagético, o agora é um permanentefastforwarding (FFwd) — uma aceleração dos padrões rítmicos de imagem e de som em cuja velocidade se quebra o espaço e o tempo para se atingir a iconoclastia e a simultaneidade. Neste sensorium fecunda a cultura fast food.
O novo padrão do consumo
Versão histórica do que Fernández-Armesto (2004, p. 315-320) chamou de “comida de conveniência atual”, o conceito de fast-food existe há séculos enquanto refeição que se faz fora de casa. Tanto na Antiguidade como na Idade Média, vendedores de rua ofereciam refeições caseiras quentes e prontas para comer. Com os processos industriais, a grande mudança foi no ritual de se alimentar, individualmente e em movimento, no ritmo da nova temporalidade. A expressão fast-food surgiu nos Estados Unidos na década de 1950 e se multiplicou pelo sistema de franquias seguindo o traçado dos eixos das rodovias, dos centros empresarias, comerciais e de lazer. Considerado a versão taylorista ou fordista da culinária, o padrão, a higiene e a limpeza são premissas tão importantes quanto o sabor da comida, fazendo com que a segurança alimentar e a oferta rápida seja a garantia de seu sucesso (FLANDRIN; MONTANARI, 1998).
O fast-food é um dos grandes ícones do consumo contemporâneo efêmero, com prazo de validade — um sanduíche, um sundae ou uma porção de batatas fritas têm validade imediata e em poucos minutos deixam de existir como produto, seja pelo consumo seja pelo descarte. O mesmo vale para o material de comunicação, que reestrutura hábitos com velocidade nunca vista: lança novidades incessantemente; que circulam em veículos convencionais ou “novas mídias” que mobilizam on-line os consumidores; que desejam imediatamente a idéia da posse de determinado produto ou serviço; que os adquirem instantaneamente e divulgam suas aquisições; que deixam de ter sentido com outras novidades que se tornam o happening do momento. E tudo se repete num moto-contínuo de consumo que movimenta um mercado mundializado que localiza e situa bilhões de pessoas que aprenderam a viver dessa forma. E que estrutura a chamada cultura, espaço no qual interações contemporâneas são realizadas. Nas palavras de Baudrillard, “O consumo é um modo ativo de relações (não apenas com objetos, mas com a coletividade e o mundo), um modo sistemático de atividade e uma resposta global sobre a qual se funda nosso sistema cultural” (Apud SILVERSTONE, 2002, p. 151).
O universo do fast-food está inserido no espaço que Naomi Klein (KLEIN, 2006, p. 219-220) descreve como composto por imagens do mundo corporativo que agigantam as empresas, encolhidas pela realidade. O tempo é virtual e regido pelo mercado publicitário, que vende o serviço de rearranjar desejos e pontuar novas temporalidades. A política se transforma em gestão do branding no mundo do marketing. E o pertencimento, antes geográfico e vinculado a uma pólis, se efetiva por marcas, definidoras de comportamentos, valores e expressões comunitárias.
Não à toa a eXperiência do tempo e do espaço é consolidada coletivamente pelo consumo ritmado de determinados padrões de imagens e de mercadorias que estruturam eventos e rituais, permitindo novas localizações e novos pontos de encontro na fluidez das ondas tecnológicas de informação. A estética da efemeridade divulgada pela mídia suplanta a estética da duração, permitindo que o imaginário coletivo consuma, ao mesmo tempo, vários eventos efêmeros novos que, em sua repetição cíclica on-line, se tornam permanentes. Consumimos a mídia e pela mídia, um aprendizado que, socialmente, é a cada instante acrescido de novas versões e updates. E assim a mídia também nos consome, enquanto consumimos bens, objetos, informações e com esse repertório passamos a construir nosso próprio mundo, personalizado, num universo de conceitos globalizados — escolhendo, nessa proposta de planejamento de gostos, os que mais se articulam com as relações que exteriorizamos na exibição de nossas identidades e fantasias.
Delivery de tempo, delivery de entretenimento
Pode-se dizer que o berço desta cultura fast-food é o shopping center. Cápsula espacial acondicionada pela estética do mercado, segundo Sarlo (2004), o shopping é um pan-óptico onde se perde a orientação de espaço (pode ser em qualquer lugar do mundo) e de tempo (transitório; dura enquanto durar o seu valor simbólico, focado nos mitos da beleza e da juventude). Por fora, traz a atração magnética de sensações de ofertas coloridas; por dentro, oferece diferenças amansadas, higienizadas, purificadas. Segundo Ferreira Freitas (1996), os shopping centers podem ser considerados os novos templos, catedrais ou assembléias, espaços construídos pelo homem contemporâneo para se distrair em um imaginário transnacional de consumo que reelabora a convivência e a socialidade do cotidiano, reterritorializando as fronteiras geopolíticas até então conhecidas por uma nova geografia, a “geografia das relações” (Idem, ibidem, p. 53). Podemos considerar, prosseguindo nesse pensar, que o shopping center é um espaço relacional parabólico, que recebe e ressignifica códigos mundiais que imediatamente e de forma itinerante são observados, absorvidos, abstraídos, consumidos, transmutados e reenviados para o mundo — um fluxo incessante de conexões e experimentações. Neste contexto, é um grande veículo de comunicação que divulga imagens e informações na velocidade ininterrupta e superficial do efêmero — as novidades são veiculadas nas vitrines, sonorizadas e climatizadas por um sistema central de controle que ambienta o espaço dos shoppings, qual moda que permanentemente se modifica, repleta de aparatos estéticos. Para Massimo Canevacci (2004), o shopping center oferece comunicação acima de qualquer mercadoria, negócio ou divertimento. Comunicação esta propagada em formas e em ritmos distintos entre os mais diferentes espaços, dotados de suas histórias e memórias geográficas, políticas e sociais em um processo de “tudo ao mesmo tempo agora e aqui”. Nesse espaço multieXperiências, onde os sentidos valem mais que os significados, Sarlo (2004) destaca que novos hábitos e novos costumes são construídos a cada instante, sem referência às tradições do passado urbano, como se só o presente existisse. Oferecendo uma nova relação de tempo e de espaço indiferente à cidade ao seu redor, o shopping center ensina o que deve ser visto, como deve ser observado e por quem, no ritmo dos modismos neoculturais do mercado; e quem nunca experimentou aprende todo este know-how com uma única visita, apenas “estando” no shopping. Mesmo que instantânea, a sensação de localização acontece nesses espaços de arquitetura artificial e irreal, simulacros dos grandes centros urbanos e mecas das diásporas contemporâneas, para onde migram as mais diversas tribos nômades em busca de encontros com ícones, marcas, mercadorias e pessoas. “Os pontos de referência são universais: logomarcas, siglas, letras, etiquetas não requerem que seus intérpretes estejam enraizados em nenhuma cultura anterior, ou distinta da cultura de mercado” (Idem, ibidem, p. 19-20).
Civilização contemporânea e a sua meca
Mediados pela linguagem do mercado, os visitantes do shopping center, independentemente de sua classe social ou status cultural, compartilham os mesmos sonhos de consumo e os mesmos desejos pelo novo e pelo transitório, com prazo de validade sabido, incessantemente divulgados pela mídia e transformados em sonhos do imaginário coletivo. Sonhos de longevidade, de beleza, de determinado estilo de vida, de prestígio, de felicidade. Na vitrine da loja de sapatos ou no banner do fast-food, o mecanismo de pertencimento àquele desejo de aquisição redesenha o mapa dos pertencimentos e cria novos layers para o comportamento de consumo.
Sem precedentes históricos com tamanha capacidade de mediar e modificar costumes, essa cultura fast-food tem uma característica muito peculiar, distinta de toda a historicidade política da construção de sentidos da esfera pública: um discurso polissêmico de inclusão. Espaço extraterritorial e transocial de livre trânsito, além das delimitações mercantis que regem seu funcionamento, o shopping possui regras que as diferentes comunidades que o utilizam estruturaram, referentes a horários de freqüência, espaços de consumo e organização de convivências que delineiam as tribos sem excluir nenhum de seus visitantes, mesmo que não consumidores. Perfeito na teoria e na fala midiática, impulso igualitário produz novos preconceitos sociais, raciais, sexuais, morais e tribais, resultantes da co-produção de sentidos estruturada por consumidores, visitantes, funcionários, lojistas entre outros tantos “eus” relacionais que se articulam nas pontes de idéias da arquitetura sociocultural dos shopping centers.
Assim, surge um novo folclore derivado do imaginário do consumo, trazendo na velocidade, na urgência, no instantâneo, na efemeridade, um pouco de nostalgia — como se a globalização geográfica pudesse efetivar uma globalização temporal, que unisse não apenas todos os territórios em um mesmo espaço, mas todos os tempos da história em um mesmo presente —, a chamada “presentificação do real” divulgada pela comunicação contemporânea. O fluxo incessante, a agitação desordenada, a música non stop dentro desses espaços estão relacionados com medo do vazio. A fúria consumista nos shopping centers consome não apenas produtos e símbolos; consome a impressão de pertencer a uma espécie comum. Baumam (2001, p. 116) destaca que nestes espaços os consumidores buscam “o sentimento reconfortante de pertencer — a impressão de fazer parte de uma comunidade”, uma vez que não se faz necessário negociar dentro de um templo de consumo pois todos têm a mesma intenção: a sensação da experiência de vivenciar uma identidade comum em um espaço que se torna uma extensão de suas casas na reapropriação do cotidiano acelerado diante do fast-world, e não o contrário, como pensam alguns, em que o fast-food acelerou o mundo.
Bem vindo ao seu espaço, civilização shopping center. E ao seu tempo.
Tempo de eXtremos, de um consumo que se eXperimenta na hora e se ingere em segundos senão esfria. Ou eX-pira. Tempo eterno enquanto dura, esse da cultura fast-food.
Referências bibliográficas
FEATHERSTONE, Mike. Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
KÖPYTOFF, I. Hanners. The International African Frontier: The making of African Political Culture. In: The African Frontier. Bloomington: Indiana University Press, 1987.
CARDOSO, Sérgio. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BAUMAN, Sygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 5ª ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.
MASSIMO, Illardi (org.). La Città Senza Luoggi. Gênova: Costa e Nola, 1990.
FERNÁNDEZ-ARMESTO. Comida uma história. Rio de Janeiro: Record, 2004.
FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mídia? São Paulo: Loyola, 2002.
KLEIN, Naomi. Sem logo. Rio de Janeiro: Record, 2006.
SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
FREITAS, Ricardo Ferreira. Centres Commerciaux: îles urbaines de la post-modernité. Paris: Éditions L’armattan, 1996.
CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica. São Paulo: Studio Nobel, 2004.
BAUMAN, Sygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.